domingo, 11 de maio de 2014

Faça Valer a Pena


Eu me lembro. Não consigo esquecer. Nunca consegui. Era uma quinta-feira quente e mais escura que o normal. Eles invadiram meu barraco. As luzes do farol da viatura machucavam meus olhos, rodavam em azul e vermelho iluminando a imundícia de onde vivi. Jogaram tudo ao chão e quebraram meu lixo. Era lixo, mas era meu, e era tudo o que tinha. Quarenta dias depois, estávamos no tribunal, minha culpa e eu.

Confesso que não tinha coragem de levantar a cabeça. A vergonha era um chapéu de chumbo, pesado demais para mantê-la erguida por muito tempo. Não ouvi uma palavra dos advogados, mas recordo-me bem da voz do juiz: "culpado"! "Culpado", ele disse. Culpado, e ele tinha razão. Condenado à estaca, eu devia ser apedrejado vivo antes de ser pendurado. Não retruquei, não xinguei ninguém, não amaldiçoei, não disse nada. Eu sabia que era culpado e não tentei provar uma inocência que não possuía.



A execução era sumária, portanto, o meirinho segurou-me pelo braço, já fixamente preso pelas correntes. Me deu dois empurrões, e como uma mula de carga, eu entendi o recado. Enquanto caminhava rumo à morte certa, o tilintar das correntes zumbiam como pano de fundo para minha mente cheia. Cheia de nada. Eu vagava entre este mundo e o meu. Não vou dizer que não tive medo. Minha alma estava aterrorizada, mas não conseguia esboçar reação. A certeza da culpa me fazia pensar em justiça, e isso parecia ser uma coisa boa afinal. Aceitei minha condenação, mas nem disso me orgulho.

Com aquele jeito meio pinguim de andar, afinal as correntes aos pés atrapalhavam meus passos, vi outros passos. Passos de um homem alto em minha direção. Já o havia notado entre os que assistiram meu julgamento, mas meu chapéu de culpa me fez desviar dele o olhar, e voltava a olhar para dentro de mim: eu via culpa.

Agora consegui ver seu rosto, e por um instante esqueci-me do tribunal, esqueci-me das algemas, esqueci-me das correntes, esqueci-me até da justa condenação. Quando tentei olhar nos seus olhos (me senti movido a isso), não consegui por mais de um quarto de segundo. Tive vergonha. Ele me parecia diferente, e também familiar. Tentei contemplar aquele homem estranho mais uma vez, e foi quando caí.

Caí de susto quando vi meu próprio rosto no rosto dele. Há poucos instantes era um homem, e agora aquele outro homem era igual a mim. Ele tinha o meu rosto. Não entendi nada a princípio. Minha mente ficou tão confusa que não conseguia me levantar. Coração acelerado, eu respirava como uma locomotiva. Tentei encher os pulmões três vezes, mas o ar não entrava. Aquele homem se abaixou, olhou diretamente nos meus olhos e eu não conseguia acreditar. Era meu rosto que estava no rosto dele! Me arrastei velozmente jogando braços e pernas, recuando de medo por não entender que mágica assombrosa era aquela. Eu suava, minha barriga embrulhou na mesma hora e meu peito ficou frio.

- Quem é você?! O que é isso?!

Foi então quando ele falou. Meu coração acelerado, harmonizou quando o ouvi. "Calma. Estou aqui para ajudá-lo", ele disse. Não entendia como as pessoas ao meu redor pareciam manequins de cera. Nem piscavam. Até hoje não sei o que houve naquela entrada de corredor. Mas suspeito que aquele homem fez parar o tempo.

Ele me pediu o macacão de condenado, e o vestiu por cima das suas próprias roupas. Ninguém diria que aquele homem não era eu. Eu mesmo comecei a duvidar de quem eu era, de tão idêntico ele era a mim.

Ele me estendeu a mão, e quando levantei, o volume da multidão abriu, e o tempo voltou a passar. Ouvia agora as palavras de condenação, os xingamentos, e todo ódio jogado contra o condenado. Não sei como aconteceu, mas nós havíamos trocado de lugar. Era como se eu me visse de fora. Vi toda a fúria da turba contra mim sendo vociferada contra ele. Ainda confuso, consegui divisar que o culpado era eu, não aquele homem. Com o pobre senso de justiça que ainda me restava, tentei avisar a multidão, mas os xingamentos era mais altos que meus apelos. Todo esforço era em vão.

Eles o arrastaram para o pátio. Vi quando um homem baixinho lhe deu uma rasteira, e agora caído com a face no chão, as pedras começaram a atravessar o ar. Eu não quis olhar, então fechei os olhos. Quando os abri novamente, havia muito sangue. Sangue nele, e sangue no chão. Continuaram jogando algumas pedras, mas ele não reagia, só olhava para a estaca. Tentei fazê-los parar, mas inúteis foram meus esforços. Eram muitos, e eles finalmente o penduraram no madeiro.

Eu chorei. Eles haviam matado o homem errado. Eles mataram O Inocente. Deitei-me no chão, lembrei-me de Deus e gritava perdão. Puxava maços de terra, e gritava perdão. Enfiei a cara na areia, e gritava perdão. "Fui eu! Fui eu! Não ele, não foi ele! Não era ele Senhor, era eu!". As pessoas foram embora, e agora restávamos nós dois. O Corpo e eu. O Inocente morto, e o culpado gritante.

Depois de certo tempo perdi a voz. O céu enegreceu e uma sensação de paz estranha habitava minha alma. Comprovei que o choro de fato acalma a alma. Quando gastei todas as reservas de lágrimas, sentei-me no chão, e olhei a estaca. Não havia ninguém lá, ele tinha sumido. Olhei ao redor por cento e oitenta graus duas vezes, não havia ninguém lá. Gelei quando levantei a cabeça. Aquele homem, agora vivo inclinado sobre mim, olhava-me no chão.

Seus olhos eram grandes e profundos, e carregava ainda aquele mesmo semblante pacífico que havia me encontrado na condenação. Tentei dizer-lhe alguma coisa, explicar o mal entendido, e foi quando tentei falar e a voz não saiu que lembrei: havia perdido toda voz gritando perdão.

Ele sorriu, olhou dentro da minha alma como a luz atravessa um cristal, e num tom limpo e amável falou: "Faça valer a pena". Ergueu-me do chão, e quando um ventinho morno me obrigou a finalmente cerrar os olhos antes esbugalhados, ele desapareceu.

(Crônicas Jockeanas)

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Inspiração: "Isso é amor. Pois sendo eu culpado, tomou minha sentença sobre si e me salvou." - (Música: Isso é Amor, Vocal Livre)

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Graça aos Miseráveis

Se vai tudo bem com a igreja em nossos dias, então Cristo mentiu quando escreveu endereçada a nós a carta apocalíptica de Laodiceia, e ele não teria razão alguma em dizer que irá vomitar-nos de Sua boca como disse que faria. Mas se Cristo disse a verdade, e somos mesmo os miseráveis que ele disse que somos, onde se esconderam aqueles que lutam e propagam que O Juízo se aproxima, que estamos cegos, pobres e nus diante da prescrutadora justiça perfeita de Deus?

Há uma ira vindoura prestes a desabar sobre nossas cabeças, exigindo a penalidade que nossos atos merecem. Não é tirania de Deus, é pura justiça. Pecamos e somos reconhecidamente dignos da exclusão existencial. E cá nos encontramos: em campo aberto, nus e desprotegidos pelos nossos pecados diante de tremenda e justa tempestade.

Miserável. Repita comigo: Eu sou um miserável diante de Deus. Estou pobre, cego e nu diante da Sua justiça perfeita.

Amigo, corramos para Cristo! Fujamos para nos esconder nEle. Li num livro que "Ele é capaz de salvar definitivamente aqueles que, por meio dele, aproximam-se de Deus" (Hebreus 7:25), mesmo o maior dos miseráveis pode encontrar abrigo nEle, mesmo você e eu.
A isso chamam graça.
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