quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Estarei Aqui

Quando desistir de uma vida de aparências,
eu estarei aqui para lhe oferecer A Essência
que sempre esteve em mim.
Então, você entenderá a fundamental diferença
que há entre viver e apenas existir.

(Jesus Cristo, Cf. João 4:10-14)

Mansidão

Eu havia acabado de dar os primeiros passos sobre o cume do monte que quase morri tentando alcançar, e, agora que minha tarefa parecia completa, minhas pernas já tremiam e queimavam tanto que o chão parecia me fazer o convite para deitar. Com as mãos bastante feridas das vezes que precisei me agarrar em pedras enquanto subia para não despencar despenhadeiro abaixo, apoiei a direita e em seguida levei um dos joelhos menos esfolados para conseguir algum apoio. Foi quando notei, pela dor, que duas ou três costelas pareciam estar fora do lugar - talvez isso explicasse como era difícil fazer o ar entrar quando inspirava.

Mal terminei o dolorido movimento quando, de relance, e com um dos olhos inchados, vi ali no canto a silhueta de uma figura real sob um manto marrom: esplêndida, alta, nobre e que, de costas para mim, parecia contemplar pacificamente o outro lado do monte que subi.

Ao notá-lo em minha visão, meu braço enfraqueceu, bati o cotovelo na terra e logo em seguida fui de face ao chão - doeu muito. Doía tudo. Eu parecia um espantalho que pouco se mexia e o que restava do corpo murmurava. Ainda caído, quase desmaiando, parei por um dois segundos para observá-lo, e sua presença, assim como vi na primeira vez, era algo formidável. Era como se uma atmosfera de paz e serenidade o envolvesse. Sua presença era a mais agradável das presenças. Não perguntei quem era, pois sabia que só um alguém podia ser assim. Juntei um pouco de força que nem sabia mais ter, e depois de algumas tentativas, eu estava quase de pé - meio farrapo, meio homem que se locomovia sobre o chão.

Curvei-me com dor para lhe dizer:
- Meu Senhor e meu Rei, cheguei ao cume do monte como fui ordenado. Quase morri muitas vezes, pouca força me restou da jornada, mas aqui estou conforme a sua vontade.
- Muito bem, meu filho, - uma voz profunda e amável ecoou ao nosso redor quando ele falou ainda de costas, sem se virar - agora venha para junto de mim e veja o que vejo.

Ao ouvi-lo dizer "venha", minha coluna ficou ereta, perdi todo o senso da dor e andei suave e perfeitamente até me por ao seu lado. Estávamos à beira de uma elevação que se estendia longamente até a base, e ao seu final se convertia numa planície muito extensa. Ela estava superpovoada por criaturas gigantes, cobertas com sangue, tinham braços desproporcionais e dentes expostos e salivantes. Eram milhares e milhares deles, das mais diferentes formas e deformidades. Todos estavam raivosos, olhavam para nós e pareciam prontos a nos atacar.

- Meu Senhor! - exclamei subitamente e virei-me para vê-lo. Seu rosto estava molhado e a cena mais linda que até então eu jamais havia visto aconteceu. Vi quando uma nova lágrima brotou do seu globo ocular e ela brilhava imensamente. Esférica e límpida como cristal, brilhante como que tendo luz própria.  Nunca imaginei que pudesse haver beleza tão semelhante ao ver alguém chorar.

- Meu Senhor! - exclamei de surpresa por nunca ter ouvido em tantas lendas de que alguém o tenha visto chorar. Não sabia o que dizer, e percebi que ele estava chorando por olhar a multidão de deformados na planície lá embaixo, à nossa frente.

Eles eram tão grandes e horrendos! Aqueles dentes expostos e pontiagudos, aquelas garras prontas a me destroçar. Engoli de medo e meu pé parecia recuar.

- Você irá enfrentá-los e vencê-los. - ele me disse.
- Mas meu Rei, eu...
- Seja forte e corajoso.

Foi enquanto o ouvi, que algumas coisas aconteceram. Eis que ao ouvi-lo dizer "seja forte", a linha côncava do meu peito se inverteu pondo-se para fora, e filetes de aço se estenderam de cima abaixo até que o dorso do meu peito se tornou de metal. Ao mesmo tempo, meus braços e os punhos se avolumaram e enrijeceram até quase petrificar, mas ainda eram flexíveis nas articulações. Minhas pernas absorveram grande volume muscular e notei que o novo peso era tamanho que me fez afundar um pouco mais no chão. Eu não sabia até então, mas havia aumentado muitíssimo meu tamanho original. Meu próprio corpo parecia uma armadura gloriosa.

Quando o ouvi dizer a palavra "corajoso", minha cabeça se inclinou para frente e a coluna se alinhou juntamente, as estruturas dos meus pés se alongaram e meu tornozelo se tornou muitas vezes mais flexível que o normal. Estendi os braços para me apoiar enquanto a cabeça parecia apontar para meus inimigos. Em posição de disparo, eu estava como uma arma de guerra viva, uma flecha gigante, pronta para ser atirada quando ele continuou:

- Ainda está com medo? - ele perguntou.
- Não, meu senhor. - olhando fixamente para a multidão, respondi num tom muitíssimo grave e sereno, agora como se dez vozes respondessem ao mesmo tempo comigo, de modo que ao expelir o ar pela garganta, era possível ouvir o som estalar. E continuei:

 - Na verdade, sinto como se pudesse destruí-los a todos. Posso esmagá-los facilmente, e não sobraria ninguém.
- Pois muito bem, - ele me disse - agora desfaça-se de toda sua força e poder, e sacrifique-se por eles a fim de salvá-los.

Eu poderia ter ficado chocado ao descobrir que tendo a força de todo um exército num homem só, deveria usar tudo o que recebi para salvar os mesmos monstros que me queriam devorar. Mas não só meu corpo havia mudado. Eu entendia parte do seu plano, então afirmei sem questionar:

- Sim, meu Senhor. E como se chama todo esse poder que devo manter sob domínio para salvá-los?
- Mansidão, meu filho. Mansidão é o nome desse poder. Agora vá.

Quando me dei conta de que a ordem havia chegado aos meus ouvidos, eu já havia descido mais da metade de todo o declive. Os que antes chamei de inimigos começaram a recuar. Mas minha velocidade diminuiu pois meus tendões derreteram. Meus pés encurtaram, meu peito se desfez e meus punhos quebraram.

Vendo-me indefeso, eles perderam o medo, se achegaram curiosos, e então eu comecei a falar:

- "Eis que no princípio era o Verbo..."

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Resenha - Uma Força Medonha, C. S. Lewis

Uma Força Medonha, C. S. Lewis
(★★☆☆☆)

Este é o último volume da trilogia espacial de Lewis. Leitura obrigatória para quem esteve em Narnia, gostou da ficção lewisiana e já ouviu falar da amizade de Lewis com Tolkien - representado na trilogia pelo Dr. Ransom.

Este é, até o momento, o livro de Lewis que menos gostei. A história é extensa, com uma trama bem desenhada e estranhamente emaranhada. Com complexidades que só a realidade costuma apresentar.

Passei a maior parte do livro esperando aquele momento em que a história finalmente parece caber na minha mente e começa a desenhar um sentido para dar desfecho a trilogia, mas esse momento veio aos poucos e não com um desfecho como os que presenciei em As Crônicas de Narnia.

Na verdade, esse Lewis da trilogia espacial não me pareceu o mesmo que desenhou Aslam. Uma rápida investigação me mostrou que Lewis ainda amadureceria muito do aspecto ficcional até chegar em Narnia. Essa trilogia foi escrita muito antes, e tem propósitos mais específicos, especialmente filosóficos com algum cunho cristão. Provavelmente, Lewis tinha a intenção de nos fazer refletir sobre o conflito cósmico entre o bem e o mal. E fez-me refletir sobre minha posição nesse conflito várias vezes.

A linguagem não é a mais clara, mas possivelmente pela tradução da editora. A leitura, como observa Lewis no prefácio, pode até ser feita independente das obras anteriores, a saber Além do Planeta Silencioso e Perelandra. Pode-se observar a paixão de Lewis pela literatura medieval e lendas arturianas - algo que já tinha lido a respeito na biografia de Lewis escrita por Alister McGrath (excelente, por sinal).

A trilogia vale muito mais à pena pelos dois volumes anteriores que são muito interessantes, e a leitura deste último, torna-se portanto, obrigatória.

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Resenha - Graça Abundante ao Principal dos Pecadores, John Bunyan

Graça Abundante ao Principal dos Pecadores, John Bunyan
(★★★★★)

Estava eu lendo O Grande Conflito, obra consagrada de Ellen G. White, quando ela me dá o testemunho especial da vida de John Bunyan (1628 - 1688) - um antigo homem de Deus, preso por não desistir de falar de Cristo por circunstância alguma.

Eis o que li em O Grande Conflito: "Em nauseabundo calabouço, repleto de devassos e traidores, João Bunyan respirava a própria atmosfera do Céu; e ali escreveu a maravilhosa alegoria da viagem do peregrino, da terra da destruição para a cidade celestial. Por mais de dois séculos aquela voz da cadeia de Bedford tem falado com poder penetrante ao coração dos homens. O Peregrino e Graça Abundante ao Principal dos Pecadores, escritos por Bunyan, têm guiado muitos à senda da vida." (O Grande Conflito, p. 252)

Bunyan ficou 12 anos no cárcere por se recusar a para de pregar o evangelho. E foi lá, dentro da cadeia, que ele escreveu o que viria a ser o maior clássico da literatura cristã de todos os tempos, depois da Bíblia. O Peregrino (1678) tornou-se um livro especial demais para mim. Ao lê-lo, descobri alguém que adquiriu uma visão muito precisa e profundamente espiritual da vida cristã, e me aconselhou bastante. Fiquei muito feliz e impressionado com a similaridade das experiências vividas por Cristão, a personagem da estória de Bunyan. A importância dessa obra para minha vida, de uma fase em especial da qual fui completamente confortado, eu pouco consigo descrever, Deus o sabe. Isso confirmou outras recomendações que já tinha ouvido sobre O Peregrino.

Um outro escritor por quem tenho a maior estima também me falou de Bunyan. Utilizado como argumento em Cristianismo Puro e Simples, C. S. Lewis cita a vida de Bunyan como uma evidência da inteligência inerente ao cristianismo: "Deus não detesta menos os intelectualmente
preguiçosos do que qualquer outro tipo de preguiçoso. Se você está pensando em se tornar cristão, eu lhe aviso que estará embarcando em algo que vai ocupar toda a sua pessoa, inclusive o cérebro. Felizmente, existe uma compensação. Aquele que se esforça honestamente para ser cristão logo percebe que sua inteligência está aprimorada. Um dos motivos pelos quais não é necessário grande estudo para se tornar cristão é que o cristianismo é em si mesmo uma educação. Foi por isso que um crente ignorante, como Bunyan, foi capaz de escrever um livro que espantou o mundo inteiro".

Coisas como essa, é claro, fizeram minha curiosidade por Bunyan crescer bastante. E foi numa visita informal a uma amiga que falei de Bunyan, e fui surpreendido de duas formas por ela. A primeira foi de ela ter essa obra em casa; e a segunda, de me presentear ali mesmo com ela! Ganhei 'Graça Abundante ao Principal dos Pecadores' de presente naquele dia. Muito obrigado, Evelyn!

Esta é a autobiografia de Bunyan. Mais recomendada pelos frutos de sua vida do que pela obra em si. Bunyan foi chamado de ignorante por C. S. Lewis por sua pobreza lastimosa em educação formal. Filho de um latoeiro (consertador de panelas e vasilhas), Bunyan era de fato muito pobre e bastante vazio intelectualmente. Talvez arruaceiro na idade pueril, tinha uma boca bastante inclinada a praguejar e ofender, como ele mesmo diz.

Aos poucos, sua consciência foi despertada pelo Espírito Santo, e ele se tornou um homem de caráter firme e nobre. Possuía um forte apelo pela necessidade de viver vida santificada, e isso o levava a vales profundos de conflito pessoal. A vida de Bunyan foi marcada por densos rios de angústia com momentos de regozijo. Sua necessidade de perdão e de pertencer a Cristo era tudo o que ocupava sua consciência.

Pregador ousado, Bunyan passou a reconhecer o dom de falar de Cristo aos pecadores, e foi também reconhecido por isso. Multidões se reuniam para ouvi-lo falar da Palavra de Deus, e por isso mesmo foi perseguido e preso.

Sua biografia, contudo, é marcada pelas descrições detalhadas das experiências espirituais profundas que viveu, e que acredito, não ser familiar a maioria dos cristãos modernos. Muitos o julgariam digno de pena e necessitado de apoio médico profissional. Mas foi através de uma vida frágil como essa que Deus fez um servo de fibra espiritual inquebrantável, e, talvez, o cristão moderno mais influente de todos os tempos através de suas obras escritas.

Não recomendo essa obra para o público em geral com outros objetivos de leitura. Mas se você, como eu, tem profundos conflitos pela necessidade do perdão do Céu e dificuldades de explicar suas experiências espirituais para outras pessoas, acredito que Bunyan pode lhe ser grande fonte de conforto e instrução. De fato, Graça Abundante ao Principal dos Pecadores adquiriu profundíssimo significado para mim pela semelhança de suas experiências espirituais (com a ressalva de que as dele são, obviamente, muito mais intensas) a ponto de poder dizer aos meus amigos que, se eles, por acaso, tiverem algum interesse em conhecer partes da minha vida que não sou capaz de explicar, leiam essa obra. É minha biografia escrita por alguém do século XVII. De uma forma difícil de definir, John Bunyan sou eu.

domingo, 17 de abril de 2016

Se Cristo Tivesse Aplicado uma Prova de Seleção


Se Cristo tivesse aplicado uma prova de seleção para a escolha dos apóstolos, quem estuda os evangelhos sabe que, dos doze, era bem provável que Judas fosse um dos poucos aprovados. Ora, boa parte dos discípulos era composta de homens pobres, com pouca instrução formal e certas dificuldades emocionais. Já Judas possuía certa habilidade financeira, e talvez por isso mesmo tenha sido eleito tesoureiro do grupo. Isso nos mostra o quanto Cristo estava mais à procura de pecadores sinceros do que de homens capacitados. Ao que tudo indica, um coração contrito tinha-lhe mais valor do que diplomas acadêmicos.

Havia em seu tempo muitos doutores da Lei, versados em língua hebraica e mestres da Torá. Mas ele preferiu alguns humildes pescadores dentre o povo comum. Não acredito que Jesus tenha mudado de opinião nos nossos dias. Acho que ele ainda procura aquele punhado de homens humildes e sinceros no meio da multidão.

Talvez Jesus queira mesmo aquele Pedro contrito, mas um tanto orgulhoso. Talvez ele busque o João estourado, mas de coração sensível. Talvez ele queira mesmo o Tiago rude, mas de íntimo sincero.
Se os critérios de seleção de Jesus são tão diferentes assim, talvez Jesus ainda procure pessoas comuns hoje em dia. Talvez as pessoas que ele ainda procure são pessoas assim, difíceis, complicadas, duras, mas pessoas sinceras. Talvez com um perfil não tão recomendável. Sendo esse o caso, talvez ele procure pessoas desse tipo... tipo eu, tipo você!
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