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quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Mansidão

Eu havia acabado de dar os primeiros passos sobre o cume do monte que quase morri tentando alcançar, e, agora que minha tarefa parecia completa, minhas pernas já tremiam e queimavam tanto que o chão parecia me fazer o convite para deitar. Com as mãos bastante feridas das vezes que precisei me agarrar em pedras enquanto subia para não despencar despenhadeiro abaixo, apoiei a direita e em seguida levei um dos joelhos menos esfolados para conseguir algum apoio. Foi quando notei, pela dor, que duas ou três costelas pareciam estar fora do lugar - talvez isso explicasse como era difícil fazer o ar entrar quando inspirava.

Mal terminei o dolorido movimento quando, de relance, e com um dos olhos inchados, vi ali no canto a silhueta de uma figura real sob um manto marrom: esplêndida, alta, nobre e que, de costas para mim, parecia contemplar pacificamente o outro lado do monte que subi.

Ao notá-lo em minha visão, meu braço enfraqueceu, bati o cotovelo na terra e logo em seguida fui de face ao chão - doeu muito. Doía tudo. Eu parecia um espantalho que pouco se mexia e o que restava do corpo murmurava. Ainda caído, quase desmaiando, parei por um dois segundos para observá-lo, e sua presença, assim como vi na primeira vez, era algo formidável. Era como se uma atmosfera de paz e serenidade o envolvesse. Sua presença era a mais agradável das presenças. Não perguntei quem era, pois sabia que só um alguém podia ser assim. Juntei um pouco de força que nem sabia mais ter, e depois de algumas tentativas, eu estava quase de pé - meio farrapo, meio homem que se locomovia sobre o chão.

Curvei-me com dor para lhe dizer:
- Meu Senhor e meu Rei, cheguei ao cume do monte como fui ordenado. Quase morri muitas vezes, pouca força me restou da jornada, mas aqui estou conforme a sua vontade.
- Muito bem, meu filho, - uma voz profunda e amável ecoou ao nosso redor quando ele falou ainda de costas, sem se virar - agora venha para junto de mim e veja o que vejo.

Ao ouvi-lo dizer "venha", minha coluna ficou ereta, perdi todo o senso da dor e andei suave e perfeitamente até me por ao seu lado. Estávamos à beira de uma elevação que se estendia longamente até a base, e ao seu final se convertia numa planície muito extensa. Ela estava superpovoada por criaturas gigantes, cobertas com sangue, tinham braços desproporcionais e dentes expostos e salivantes. Eram milhares e milhares deles, das mais diferentes formas e deformidades. Todos estavam raivosos, olhavam para nós e pareciam prontos a nos atacar.

- Meu Senhor! - exclamei subitamente e virei-me para vê-lo. Seu rosto estava molhado e a cena mais linda que até então eu jamais havia visto aconteceu. Vi quando uma nova lágrima brotou do seu globo ocular e ela brilhava imensamente. Esférica e límpida como cristal, brilhante como que tendo luz própria.  Nunca imaginei que pudesse haver beleza tão semelhante ao ver alguém chorar.

- Meu Senhor! - exclamei de surpresa por nunca ter ouvido em tantas lendas de que alguém o tenha visto chorar. Não sabia o que dizer, e percebi que ele estava chorando por olhar a multidão de deformados na planície lá embaixo, à nossa frente.

Eles eram tão grandes e horrendos! Aqueles dentes expostos e pontiagudos, aquelas garras prontas a me destroçar. Engoli de medo e meu pé parecia recuar.

- Você irá enfrentá-los e vencê-los. - ele me disse.
- Mas meu Rei, eu...
- Seja forte e corajoso.

Foi enquanto o ouvi, que algumas coisas aconteceram. Eis que ao ouvi-lo dizer "seja forte", a linha côncava do meu peito se inverteu pondo-se para fora, e filetes de aço se estenderam de cima abaixo até que o dorso do meu peito se tornou de metal. Ao mesmo tempo, meus braços e os punhos se avolumaram e enrijeceram até quase petrificar, mas ainda eram flexíveis nas articulações. Minhas pernas absorveram grande volume muscular e notei que o novo peso era tamanho que me fez afundar um pouco mais no chão. Eu não sabia até então, mas havia aumentado muitíssimo meu tamanho original. Meu próprio corpo parecia uma armadura gloriosa.

Quando o ouvi dizer a palavra "corajoso", minha cabeça se inclinou para frente e a coluna se alinhou juntamente, as estruturas dos meus pés se alongaram e meu tornozelo se tornou muitas vezes mais flexível que o normal. Estendi os braços para me apoiar enquanto a cabeça parecia apontar para meus inimigos. Em posição de disparo, eu estava como uma arma de guerra viva, uma flecha gigante, pronta para ser atirada quando ele continuou:

- Ainda está com medo? - ele perguntou.
- Não, meu senhor. - olhando fixamente para a multidão, respondi num tom muitíssimo grave e sereno, agora como se dez vozes respondessem ao mesmo tempo comigo, de modo que ao expelir o ar pela garganta, era possível ouvir o som estalar. E continuei:

 - Na verdade, sinto como se pudesse destruí-los a todos. Posso esmagá-los facilmente, e não sobraria ninguém.
- Pois muito bem, - ele me disse - agora desfaça-se de toda sua força e poder, e sacrifique-se por eles a fim de salvá-los.

Eu poderia ter ficado chocado ao descobrir que tendo a força de todo um exército num homem só, deveria usar tudo o que recebi para salvar os mesmos monstros que me queriam devorar. Mas não só meu corpo havia mudado. Eu entendia parte do seu plano, então afirmei sem questionar:

- Sim, meu Senhor. E como se chama todo esse poder que devo manter sob domínio para salvá-los?
- Mansidão, meu filho. Mansidão é o nome desse poder. Agora vá.

Quando me dei conta de que a ordem havia chegado aos meus ouvidos, eu já havia descido mais da metade de todo o declive. Os que antes chamei de inimigos começaram a recuar. Mas minha velocidade diminuiu pois meus tendões derreteram. Meus pés encurtaram, meu peito se desfez e meus punhos quebraram.

Vendo-me indefeso, eles perderam o medo, se achegaram curiosos, e então eu comecei a falar:

- "Eis que no princípio era o Verbo..."

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Amor em Carne e Osso

O amor. Faz um tempo que amor resolveu que precisava se materializar para ser aceito pelas pessoas. Ele então, que sempre fora abstrato, vestiu-se de carne; pôs ossos que sustentassem os músculos, cobriu-se de pele e pôs unhas, pêlos e cabelos. Ficou idêntico a nós. Você não veria distinção material nesse agente disfarçado. E certo dia de manhã, o amor nasceu humano. Agora o amor tinha mãos e pernas, andou entre nós e nos tocou. Muitos logo se alegraram com ele. Agora tão concreto, visível, tocável e, assim, tão amável. Mas as pessoas não gostaram quando o amor exigiu reciprocidade. Porque você sabe: o amor é exigente no quesito compromisso. Puxa, foi horrível. Mas as pessoas puxaram o amor pelos cabelos e bateram muito nele. O amor apanhava na cara. Foi humilhado. Foi acusado. Cuspiram nele. Traíram o amor. Mas as pessoas ataram suas mãos até que o penduraram numa Cruz. O amor sofreu, chorou, amou e por fim morreu de amor. Mataram o amor, menininha. Mas você sabe, o amor não morre; se transforma e amadurece. Morrer era parte do plano, você sabe. Agora eu também o amo, e descobri que sem sacrifício não há amor, querida. E é por isso que hoje eu morro um pouquinho por você; abdico alguns gostos, renego idiossincrasias e pessoalidades, cuspo fora meus egoísmos. Hoje eu morro um pouquinho por você, só pra dizer que eu também lhe amo porque Ele me amou primeiro.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Erupção nas Nuvens

Começou aquela garoa fininha. As mulheres recolhiam suas cangas da areia; algumas davam gritinhos e corriam. Os homens retiravam suas crianças da água e fugiam. Todos saíram da praia quando os respingos começaram a cair. Ignorei-os e permaneci ali sentado; não havia açúcar em minha pele e eu nunca fiz uso de cigarro. Agora, estávamos apenas eu e o gigante cinza-azul do mar. O céu antes anil, enfureceu-se, condensou e enegreceu de raiva contra minha petulância de permanecer ali para contemplá-lo.

Eles não presenciaram o que veio a seguir. O medo irracional do inofensivo lhes privou do privilégio que minhas retinas contemplaram. Pois a um dado momento, o sol furou as nuvens em vários pontos projetando-se no mar, e então, cada gota da chuva que caía abrigou em si uma miniatura do astro em chama; cada pingo transmudou-se em lava incandescente precipitando-se do ar. Espetáculo! Erupção nas nuvens; fogo chovia dos céus e me refrescava. Todo o mar era ouro derretido. Laranja, ouro, fogo! Naquele dia eu fui lavado com fogo. Abri a boca para o céu e bebia lava, e engolia fogo. E todos os covardes que almejavam, sem esforço, pela luz do sol, perderam o privilégio de serem banhados de forma líquida por ele.

Aprenda esta lição, caro leitor: os que fojem ao menor respingo da tempestade perdem o privilégio de se banharem com o sol especial que ela esconde. Ao invés de impedi-lo, são as próprias densas nuvens que se transformam no prisma natural através do qual ele irá se revelar.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

O que Deus Não Perdoa

Eu estava fuçando alguns livros na biblioteca. Puxando aqui e acolá alguns exemplares. Ela entrou com passos apressados e veio na minha direção pelo corredor, entre as estantes. Não me disse bom dia ou outro cumprimento formal, mas parou diante de mim. Olhei sua expressão e parecia-me em profunda angústia emocional. Fiz que não havia notado para não constrangê-la, e sem me virar, voltando para os livros, disse um bom dia animado enquanto puxava um livro qualquer. Ela respondeu com uma pergunta apressada e sem rodeios:

- Oswaldo, tem algum pecado que seja muito grande? Do tipo que Deus não perdoa?
Então entendi. O negócio ali dentro era culpa. Não perguntei o que estava acontecendo, mas olhando para aquele rostinho de sobrancelhas caídas e semblante sobrecarregado, disse com um tom sério, mas amável:

- Existe.

Deu pra ver os olhinhos dela enchendo de lágrimas quando o som da resposta entrou pelos ouvidos e bagunçou alguma coisa lá dentro. Percebi que era a única resposta que ela temia ouvir. Demorou uns dois ou três segundos olhando na minha direção, me atravessando como se eu não existisse. Naquele momento, meio milhão de pensamentos corriam como bestas selvagens na cabecinha dela. Daí a pouco, segurando as mãozinhas, ouvi a segunda pergunta inevitável de uma voz trêmula e bem fraca:

- E qual é?

Com calma, devolvi o livro sobre revolução francesa à estante, pus a mão no ombro dela, apertei com uma força bem calculada e me virei completamente na sua direção, para então responder:

- O maior pecado na Bíblia, e o único que Deus não perdoa... é aquele do qual você não se arrepende.

Mas lembre-se, caro leitor: o arrependimento inclui o abandono do pecado. Como está escrito: "Vá, e não peques mais".

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Estou indo para Nashville

A garagem ficou vazia. O vento fazia uivos pelas frestas das janelas que ficaram escancaradas, enquanto a porta da cozinha, entreaberta, rangia de dores pelo óleo ressecado. Havia tocos de carvão espalhados pelo chão, e na geladeira, preso por um imã em formato de barquinho, um pedaço de uma folha de caderno velha e amarrotada da época da faculdade, escrito com pressa e em letra de forma:

- "Estou indo para Nashville e não sei se voltarei. Se voltar, já não serei mais eu. Se não voltar, eu já não mais serei."

domingo, 11 de maio de 2014

Faça Valer a Pena


Eu me lembro. Não consigo esquecer. Nunca consegui. Era uma quinta-feira quente e mais escura que o normal. Eles invadiram meu barraco. As luzes do farol da viatura machucavam meus olhos, rodavam em azul e vermelho iluminando a imundícia de onde vivi. Jogaram tudo ao chão e quebraram meu lixo. Era lixo, mas era meu, e era tudo o que tinha. Quarenta dias depois, estávamos no tribunal, minha culpa e eu.

Confesso que não tinha coragem de levantar a cabeça. A vergonha era um chapéu de chumbo, pesado demais para mantê-la erguida por muito tempo. Não ouvi uma palavra dos advogados, mas recordo-me bem da voz do juiz: "culpado"! "Culpado", ele disse. Culpado, e ele tinha razão. Condenado à estaca, eu devia ser apedrejado vivo antes de ser pendurado. Não retruquei, não xinguei ninguém, não amaldiçoei, não disse nada. Eu sabia que era culpado e não tentei provar uma inocência que não possuía.



A execução era sumária, portanto, o meirinho segurou-me pelo braço, já fixamente preso pelas correntes. Me deu dois empurrões, e como uma mula de carga, eu entendi o recado. Enquanto caminhava rumo à morte certa, o tilintar das correntes zumbiam como pano de fundo para minha mente cheia. Cheia de nada. Eu vagava entre este mundo e o meu. Não vou dizer que não tive medo. Minha alma estava aterrorizada, mas não conseguia esboçar reação. A certeza da culpa me fazia pensar em justiça, e isso parecia ser uma coisa boa afinal. Aceitei minha condenação, mas nem disso me orgulho.

Com aquele jeito meio pinguim de andar, afinal as correntes aos pés atrapalhavam meus passos, vi outros passos. Passos de um homem alto em minha direção. Já o havia notado entre os que assistiram meu julgamento, mas meu chapéu de culpa me fez desviar dele o olhar, e voltava a olhar para dentro de mim: eu via culpa.

Agora consegui ver seu rosto, e por um instante esqueci-me do tribunal, esqueci-me das algemas, esqueci-me das correntes, esqueci-me até da justa condenação. Quando tentei olhar nos seus olhos (me senti movido a isso), não consegui por mais de um quarto de segundo. Tive vergonha. Ele me parecia diferente, e também familiar. Tentei contemplar aquele homem estranho mais uma vez, e foi quando caí.

Caí de susto quando vi meu próprio rosto no rosto dele. Há poucos instantes era um homem, e agora aquele outro homem era igual a mim. Ele tinha o meu rosto. Não entendi nada a princípio. Minha mente ficou tão confusa que não conseguia me levantar. Coração acelerado, eu respirava como uma locomotiva. Tentei encher os pulmões três vezes, mas o ar não entrava. Aquele homem se abaixou, olhou diretamente nos meus olhos e eu não conseguia acreditar. Era meu rosto que estava no rosto dele! Me arrastei velozmente jogando braços e pernas, recuando de medo por não entender que mágica assombrosa era aquela. Eu suava, minha barriga embrulhou na mesma hora e meu peito ficou frio.

- Quem é você?! O que é isso?!

Foi então quando ele falou. Meu coração acelerado, harmonizou quando o ouvi. "Calma. Estou aqui para ajudá-lo", ele disse. Não entendia como as pessoas ao meu redor pareciam manequins de cera. Nem piscavam. Até hoje não sei o que houve naquela entrada de corredor. Mas suspeito que aquele homem fez parar o tempo.

Ele me pediu o macacão de condenado, e o vestiu por cima das suas próprias roupas. Ninguém diria que aquele homem não era eu. Eu mesmo comecei a duvidar de quem eu era, de tão idêntico ele era a mim.

Ele me estendeu a mão, e quando levantei, o volume da multidão abriu, e o tempo voltou a passar. Ouvia agora as palavras de condenação, os xingamentos, e todo ódio jogado contra o condenado. Não sei como aconteceu, mas nós havíamos trocado de lugar. Era como se eu me visse de fora. Vi toda a fúria da turba contra mim sendo vociferada contra ele. Ainda confuso, consegui divisar que o culpado era eu, não aquele homem. Com o pobre senso de justiça que ainda me restava, tentei avisar a multidão, mas os xingamentos era mais altos que meus apelos. Todo esforço era em vão.

Eles o arrastaram para o pátio. Vi quando um homem baixinho lhe deu uma rasteira, e agora caído com a face no chão, as pedras começaram a atravessar o ar. Eu não quis olhar, então fechei os olhos. Quando os abri novamente, havia muito sangue. Sangue nele, e sangue no chão. Continuaram jogando algumas pedras, mas ele não reagia, só olhava para a estaca. Tentei fazê-los parar, mas inúteis foram meus esforços. Eram muitos, e eles finalmente o penduraram no madeiro.

Eu chorei. Eles haviam matado o homem errado. Eles mataram O Inocente. Deitei-me no chão, lembrei-me de Deus e gritava perdão. Puxava maços de terra, e gritava perdão. Enfiei a cara na areia, e gritava perdão. "Fui eu! Fui eu! Não ele, não foi ele! Não era ele Senhor, era eu!". As pessoas foram embora, e agora restávamos nós dois. O Corpo e eu. O Inocente morto, e o culpado gritante.

Depois de certo tempo perdi a voz. O céu enegreceu e uma sensação de paz estranha habitava minha alma. Comprovei que o choro de fato acalma a alma. Quando gastei todas as reservas de lágrimas, sentei-me no chão, e olhei a estaca. Não havia ninguém lá, ele tinha sumido. Olhei ao redor por cento e oitenta graus duas vezes, não havia ninguém lá. Gelei quando levantei a cabeça. Aquele homem, agora vivo inclinado sobre mim, olhava-me no chão.

Seus olhos eram grandes e profundos, e carregava ainda aquele mesmo semblante pacífico que havia me encontrado na condenação. Tentei dizer-lhe alguma coisa, explicar o mal entendido, e foi quando tentei falar e a voz não saiu que lembrei: havia perdido toda voz gritando perdão.

Ele sorriu, olhou dentro da minha alma como a luz atravessa um cristal, e num tom limpo e amável falou: "Faça valer a pena". Ergueu-me do chão, e quando um ventinho morno me obrigou a finalmente cerrar os olhos antes esbugalhados, ele desapareceu.

(Crônicas Jockeanas)

--
Inspiração: "Isso é amor. Pois sendo eu culpado, tomou minha sentença sobre si e me salvou." - (Música: Isso é Amor, Vocal Livre)

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O Rosto

Era uma chuva tão grossa, que os pingos quase machucavam quando se chocavam contra minha pele. Caminhei até um espaço aberto, cercado de destroços, e foi lá que eu vi.

Vi um homem de costas, em pé e com ambos os pés sobre uma poça de lama. Uma luz muito forte irradiava no zênite. Ao seu redor, o mundo se desfazia gradativamente, como a água dissolve a lama presa na bota ou encrustada nos pneus de um carro. Ele contudo, não se movia. Nem ao menos piscava. Carros, prédios, parques, montanhas, ruas e casas, tudo estava a se dissolver.

Esse homem tinha os olhos fixos no alto, pupilas totalmente dilatadas e toda sua constituição física parecia voltada para a luz, como se se alimentasse dela de alguma forma. Ele ignorava todo o mundo destruído à sua volta.

Com o tempo, blocos gigantescos despencando de arranha-céus faziam grandes estrondos ao quebrarem-se no chão. Estilhaços eram arremessados para todas as direções. Havia muito pó, fumaça e destruição para todos os lados que se olhasse. Era sufocante. Mas ele estava lá, em pé, firme a tal ponto, que a princípio pensei que fosse uma estátua. Mas olhando bem, notei vida, muita vida pulsando de sua própria pele. Ar quente fluía dos seus pulmões. Podia-se ouvir seu coração de longe, e ele batia forte, como um tambor de guerra num compasso perfeito. Sua presença parecia criar uma atmosfera pacífica em meio àquele dilúvio de destruição.

Ele parecia divisar alguma coisa muito especial naquilo que olhava porque de tempos em tempos seu sorriso aumentava. E à medida que o tempo foi passando, ele começou a reluzir. A princípio como um bronze polido. Depois era como se sua pele fosse toda de prata. Ele tinha um porte que inspirava nobreza, apesar das roupas em farrapos. Em pé ele estava e em pé permanecia. E sorrindo.

A um dado momento, vi sua pele como feita de ouro. E a luz que por tanto tempo contemplou parecia irradiar dele mesmo, apesar de eu saber que era reflexo. Mas tornou-se um reflexo tão nítido, ao ponto de ele e a luz parecerem ser feitos da mesma substância. Ele disse alguma coisa para a luz, algo que não consegui ouvir direito, apenas um 's' ao final.

Quando falou e refletiu assim, não pude mais vê-lo. E não sei o que lhe aconteceu. O perdi de vista em contraste com a luz.

Curioso e intrigado, fui até aonde ele estava. Entrei na poça. Meus pés descalços sentiram o viscor da lama e a princípio, não entendi o que era aquilo, até ver ao fundo estas palavras escritas à mão e em letras garrafais: HUMILHAÇÃO PRÓPRIA.

No reflexo da lama, eu vi aquela mesma luz que estava agora acima de mim, a cento e oitenta graus completos. Ainda mirando a lama, pude divisar algo como um rosto em meio aquela luz e foi quando abruptamente resolvi olhar diretamente para ela. Levantei minha cabeça até a nuca tocar as costas.

Havia mesmo um rosto em meio a luz, e não era aquele homem, era Outro. Era o rosto mais lindo que já havia visto. No cristalino dos Seus olhos, eu vi galáxias, estrelas muito maiores que o sol, nebulosas de todas as cores e um lugar incrível que parecia meu lar. Não um lar em que já houvesse vivido, mas um que finalmente parecia ter sido feito para mim, e eu todo feito para ele.

Não pude deixar de olhar aquele Rosto. Não queria parar de olhá-Lo. Quanto mais olhava, mais feliz ficava. Senti meus músculos aumentarem e relaxarem ao mesmo tempo. Senti meus pés como pneus gigantes, mas não tive a mínima vontade de movê-los de lugar. Eu só queria continuar olhando àquele Rosto.

Ele sorria para mim! Seu semblante era a paz. Não que tivesse paz nele. Seu rosto era a própria paz de que tanto falamos.

Não sei por quanto tempo fiquei admirando àquela face. Talvez horas, talvez semanas, talvez anos, talvez eras. Esqueci-me do que era o tempo. Mas notei uma silhueta que agora me observava dos escombros. Não quis saber quem era e me esqueci do mundo ao redor. Mantive meus olhos fixos nEle todo tempo. Não havia dor, não havia cansaço, não havia nada. Só eu e Ele.

Desejei ser absorvido por Sua luz, e pudia senti-la pulsando em mim mesmo. Contemplei tanto sua face, que agora parecia que ela estava fixa na minha retina, como quando olhamos para o sol, e seu brilho fica marcado por alguns instantes na visão.

Até que lembrei-me de Seu Nome, e pronunciei como se cantasse para Ele. Queria agradá-lo com todo meu ser. Queria dar-lhe meus músculos, nervos, cérebro, rins e o coração.

E então disse com todo amor que acumulei por Ele ao longo da vida. Meus lábios pronunciaram O Nome que é sobre todo o nome. Sorrindo com os lábios e os olhos, eu disse: "Jesus"! E desapareci.

[JOC; Crônicas Jockeanas]

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Milagres e bochechas molhadas

De repente, Maria entrou na sala e deixou a porta bater atrás de si. Por um segundo, tremi de susto na cadeira. Olhei pro seu rosto, e notei o semblante triste de olhos marejados. Ela fazia força para não chorar, enquanto suas bochechas já molhadas, denunciavam que alguma dor vazava daquele coração aflito.

Eu não disse nada. Ela veio com calma, assentou-se do meu lado e enfiou a cara na mesa. Depois de alguns segundos, que mais pareciam anos, um silêncio sepulcral gritava na sala. Doía meus ouvidos. Eu podia me ouvir por dentro. Continuei segurando O Livro que lia. Meus ossos trincavam, o coração pulsava e o ouvido zumbia. Nada. Nenhum mosquito se atreveu a quebrar o silêncio.

Ela então virou o rosto, e entre os fios de cabelo grudados na bochecha pôs os olhos em mim. Eu só olhava com empatia. Com voz mansinha, ouvi a pergunta:

- Você acredita em milagres?

E eu que não fazia a menor ideia do que dizer, falei sem pensar:

- Você está olhando para um.

Ela sorriu.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O amor de Jesus por mim, é como cuscuz...


O amor de Jesus por mim, é como cuscuz fofinho recheado de legumes no café da manhã. É como andar de bicicleta a favor do vento no pôr-do-sol de sexta-feira na Pajuçara. É como o colo de minha mãe aos sete anos, quando eu ainda cabia lá. O amor de Jesus por mim, é como ir pra praia com minha tia Baixinha e Adônis, o cachorro dela. É como granola de cacau com leite de soja. É como lamber a massa do bolo crua na panela. É como seu primeiro beijo numa virada do ano, com toda aquela expectativa e o nervosismo de nunca ter feito isso antes. O amor de Jesus por mim, é como uma folha de papel A3 em branco e um lápis novo quando você tá inspirado pra desenhar. É como a garrafinha de suco da alfabetização com o cheiro de todos os outros sucos mas o gosto de um suco só. É como aquele sono gostoso depois do almoço de domingo. O amor de Jesus por mim, é como correr descalço na chuva, numa rua de barro em Sonho Verde. O amor de Jesus por mim, é como um copo de farinha láctea, cheio até o topo, e todo meu. É como conversar até amanhecer com sua melhor amiga no aniversário dela. É como ver seu nome na lista de aprovados do vestibular depois de ter perdido o primeiro. O amor de Jesus por mim, é como sol com chuva num sábado pela manhã às nove horas, como tudo brilha bonito. É como soltar bombinha em Gravatá nas férias de São João com todas aquelas fogueiras na rua. É como comer tortilete no natal com as luzinhas da árvore piscando. É como o cheiro do seu irmão caçula quando ele é bebezinho.

O amor de Jesus por mim é...
É que ainda tô descobrindo pra te dizer como ele é. :)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Vou aprender piano


Sabe.. eu sempre quis tocar piano. Desde meus 15 anos. Bom, é óbvio que minha mãe não podia me dar um piano.. quiçá um teclado. Mas de bom coração ela me deu um violão, e de bom coração eu aceitei. É como você criar um gato quando sonha ter um cachorro. Você se apega ao bichano, mas nunca será a mesma coisa. Diz o clichê: "Quem não tem cão caça com gato". Mas e se você não tem problemas com ratos? Vai usar o gato por esporte? Seria um caçador frustrado.

O que quero dizer, é que ainda vou aprender a tocar piano. De vez em quando, na antiga reitoria tem uns ensaios de orquestra. Cara, é fantástico! Música clássica é aquele tipo de coisa que enche o pavilhão auditivo antes de chegar no cérebro. Tipo, quando alguém que você ama diz: 'Eu te amo', e você sabe que é verdade. Seu cérebro gosta muito. Algumas coisinhas dentro da cabeça dançam, você perde a percepção do que acontece ao redor por alguns instantes e até sorri involuntariamente. É massa. =)

Não sou contra quem "quer um tchu" ou "quer um tchá", mas vamos ser sinceros: Você diria "eu te amo" ao som de Beethoven num piano ou um "quero tchá" no pandeiro?

quinta-feira, 12 de julho de 2012

As vantagens do abraço


Se você é meu amigo sabe o quanto gosto de um abraço. Dentre todas as vantagens psicológicas e fisiológicas, o abraço tem suas exímias qualidades terapêuticas. É muito bom, acalma, reduz o estresse e a pressão arterial, satisfaz, contagia, libera hormônios e endorfinas. Portanto, abraço é aquele tipo de coisa que devia vir com o selo da Sociedade Brasileira de Cardiologia que diz em letras garrafais: "APROVADO".

Eu pratico há anos por puro esporte, me qualifico como amador mas no fundo me acho um profissional. Não procuro humildade nesse assunto. Em matéria de abraço, eu me acho o cara! :D

Primeiro aquele aperto de mão caloroso depois de forte estalo: TÁC! Então com um movimento interno, puxo o braço em minha direção e com um só golpe envolvo as costas de meu 'oponente'. Presa fácil, agora é tarde, você foi abraçado.

Acredito que se a humanidade praticasse com mais afinco essa arte milenar, evitaríamos guerras e conflitos armados, úlceras e gastrites, narizes tortos e chiados de insatisfação. Um bom abraço faz milagres, camarada.

Tá perdendo tempo por quê? Comece a praticar agora! Ataque a primeira vítima que vir à sua frente. =D


Segundo Lewis: "O carinho é responsável por nove-décimos de qualquer felicidade sólida e durável existente em nossas vidas."

[Veja 5 motivos pelos quais um abraço faz bem à saúde]

quarta-feira, 11 de julho de 2012

De vez em quando



Acho que todo mundo tem o direito de ser louco de vez em quando por um pouco tempo e numa medida saudável.

Não falo daquele tipo de loucura psicótica, loucura de verdade que se vê no jornal quando alguém vai preso, mas daquela escapada da realidade fútil que a gente se acostuma a viver com o passar dos anos.

De vez em quando carregue uma criança nas costas, elas gostam muito. De vez em quando corra com seu irmão na chuva como se fosse um expert em correr na chuva, suas pernas gostam muito. De vez em quando coma pizza sem queijo, e troque o queijo por brócolis, seu estômago gosta muito. De vez em quando tenha aulas de grego e faça cara de quem entende como se fosse uma segunda língua, sua pseudo-inteligência gosta muito. De vez em quando dance na rua com um assaltante enquanto ele te pede o celular, eles não gostam muito. De vez em quando faça colação de grau e tire fotos com a velha bata de doutor do abc, sua mãe gosta muito.

Faça sempre, mas faça de vez em quando. Os benefícios de ser louco residem mais na perseverança do que na frequência, e você pode percebê-los a longo prazo.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Corre José!

Ele corria freneticamente. Músculos em fadiga, coração acelerado, peito comprimido, pulmões a pleno vapor. O peito doía como se fosse ter uma parada cardíaca a qualquer momento. Ácido lático nas pernas, só dor e fadiga. Mas ele não parava, José não podia, José só corria. "Ou corro ou morro. Melhor correr.", a si mesmo dizia José enquanto corria.

Corria José. José correu ininterruptamente até que o perderam de vista. José corria cansado, mas corria. Lá vem ele. Todo molhado, cabelo ensopado, roupa e corpo colados. É suor José.
- Corre José! Pra onde corre?
- Se eu fosse você correria também!

E lá se foi José. Cansado Molhado Suado Colado, José o menino que corria.
- Corre José, um dia você chega!
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