quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Mansidão

Eu havia acabado de dar os primeiros passos sobre o cume do monte que quase morri tentando alcançar, e, agora que minha tarefa parecia completa, minhas pernas já tremiam e queimavam tanto que o chão parecia me fazer o convite para deitar. Com as mãos bastante feridas das vezes que precisei me agarrar em pedras enquanto subia para não despencar despenhadeiro abaixo, apoiei a direita e em seguida levei um dos joelhos menos esfolados para conseguir algum apoio. Foi quando notei, pela dor, que duas ou três costelas pareciam estar fora do lugar - talvez isso explicasse como era difícil fazer o ar entrar quando inspirava.

Mal terminei o dolorido movimento quando, de relance, e com um dos olhos inchados, vi ali no canto a silhueta de uma figura real sob um manto marrom: esplêndida, alta, nobre e que, de costas para mim, parecia contemplar pacificamente o outro lado do monte que subi.

Ao notá-lo em minha visão, meu braço enfraqueceu, bati o cotovelo na terra e logo em seguida fui de face ao chão - doeu muito. Doía tudo. Eu parecia um espantalho que pouco se mexia e o que restava do corpo murmurava. Ainda caído, quase desmaiando, parei por um dois segundos para observá-lo, e sua presença, assim como vi na primeira vez, era algo formidável. Era como se uma atmosfera de paz e serenidade o envolvesse. Sua presença era a mais agradável das presenças. Não perguntei quem era, pois sabia que só um alguém podia ser assim. Juntei um pouco de força que nem sabia mais ter, e depois de algumas tentativas, eu estava quase de pé - meio farrapo, meio homem que se locomovia sobre o chão.

Curvei-me com dor para lhe dizer:
- Meu Senhor e meu Rei, cheguei ao cume do monte como fui ordenado. Quase morri muitas vezes, pouca força me restou da jornada, mas aqui estou conforme a sua vontade.
- Muito bem, meu filho, - uma voz profunda e amável ecoou ao nosso redor quando ele falou ainda de costas, sem se virar - agora venha para junto de mim e veja o que vejo.

Ao ouvi-lo dizer "venha", minha coluna ficou ereta, perdi todo o senso da dor e andei suave e perfeitamente até me por ao seu lado. Estávamos à beira de uma elevação que se estendia longamente até a base, e ao seu final se convertia numa planície muito extensa. Ela estava superpovoada por criaturas gigantes, cobertas com sangue, tinham braços desproporcionais e dentes expostos e salivantes. Eram milhares e milhares deles, das mais diferentes formas e deformidades. Todos estavam raivosos, olhavam para nós e pareciam prontos a nos atacar.

- Meu Senhor! - exclamei subitamente e virei-me para vê-lo. Seu rosto estava molhado e a cena mais linda que até então eu jamais havia visto aconteceu. Vi quando uma nova lágrima brotou do seu globo ocular e ela brilhava imensamente. Esférica e límpida como cristal, brilhante como que tendo luz própria.  Nunca imaginei que pudesse haver beleza tão semelhante ao ver alguém chorar.

- Meu Senhor! - exclamei de surpresa por nunca ter ouvido em tantas lendas de que alguém o tenha visto chorar. Não sabia o que dizer, e percebi que ele estava chorando por olhar a multidão de deformados na planície lá embaixo, à nossa frente.

Eles eram tão grandes e horrendos! Aqueles dentes expostos e pontiagudos, aquelas garras prontas a me destroçar. Engoli de medo e meu pé parecia recuar.

- Você irá enfrentá-los e vencê-los. - ele me disse.
- Mas meu Rei, eu...
- Seja forte e corajoso.

Foi enquanto o ouvi, que algumas coisas aconteceram. Eis que ao ouvi-lo dizer "seja forte", a linha côncava do meu peito se inverteu pondo-se para fora, e filetes de aço se estenderam de cima abaixo até que o dorso do meu peito se tornou de metal. Ao mesmo tempo, meus braços e os punhos se avolumaram e enrijeceram até quase petrificar, mas ainda eram flexíveis nas articulações. Minhas pernas absorveram grande volume muscular e notei que o novo peso era tamanho que me fez afundar um pouco mais no chão. Eu não sabia até então, mas havia aumentado muitíssimo meu tamanho original. Meu próprio corpo parecia uma armadura gloriosa.

Quando o ouvi dizer a palavra "corajoso", minha cabeça se inclinou para frente e a coluna se alinhou juntamente, as estruturas dos meus pés se alongaram e meu tornozelo se tornou muitas vezes mais flexível que o normal. Estendi os braços para me apoiar enquanto a cabeça parecia apontar para meus inimigos. Em posição de disparo, eu estava como uma arma de guerra viva, uma flecha gigante, pronta para ser atirada quando ele continuou:

- Ainda está com medo? - ele perguntou.
- Não, meu senhor. - olhando fixamente para a multidão, respondi num tom muitíssimo grave e sereno, agora como se dez vozes respondessem ao mesmo tempo comigo, de modo que ao expelir o ar pela garganta, era possível ouvir o som estalar. E continuei:

 - Na verdade, sinto como se pudesse destruí-los a todos. Posso esmagá-los facilmente, e não sobraria ninguém.
- Pois muito bem, - ele me disse - agora desfaça-se de toda sua força e poder, e sacrifique-se por eles a fim de salvá-los.

Eu poderia ter ficado chocado ao descobrir que tendo a força de todo um exército num homem só, deveria usar tudo o que recebi para salvar os mesmos monstros que me queriam devorar. Mas não só meu corpo havia mudado. Eu entendia parte do seu plano, então afirmei sem questionar:

- Sim, meu Senhor. E como se chama todo esse poder que devo manter sob domínio para salvá-los?
- Mansidão, meu filho. Mansidão é o nome desse poder. Agora vá.

Quando me dei conta de que a ordem havia chegado aos meus ouvidos, eu já havia descido mais da metade de todo o declive. Os que antes chamei de inimigos começaram a recuar. Mas minha velocidade diminuiu pois meus tendões derreteram. Meus pés encurtaram, meu peito se desfez e meus punhos quebraram.

Vendo-me indefeso, eles perderam o medo, se achegaram curiosos, e então eu comecei a falar:

- "Eis que no princípio era o Verbo..."

2 comentários:

  1. Eita que texto lindo, meu amigo. Gloria a Jesus. Em lágrimas.

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    1. Oh, Mykinha! Amém! Obrigado pelo incentivo de sempre. :)

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